A fuga possível
UM FILHO NA EUROPA capítulo I
No dia seguinte, às seis da manhã, o telemóvel voltou a tocar: “a mãe morreu”, disse-lhe o irmão. A mãe morreu. A mãe morreu. A mãe morreu. Ainda hoje, passados quatro anos, a frase ecoa na cabeça de Francisco. A viagem de avião do Senegal para Portugal – sozinho, assustado, sem visto. O corpo a tiritar de frio, t-shirt de algodão em cima do tronco enquanto esperava na Portela pelo autocarro que o levaria para o centro de treinos do Benfica. Os jogos em que não tinha ninguém para o ver na plateia, a solidão das férias passadas com o porteiro. De repente, o motivo principal que o fez, com apenas 15 anos, apostar tudo numa carreira de futebolista na Europa tinha desaparecido. “Ela era tudo para mim. O que mais queria era poder dar-lhe uma vida melhor. Sonhava construir-lhe uma casa como deve de ser, arranjar-lhe umas roupas decentes, fazer coisas que a minha mãe pudesse dizer ‘Francisco, aquilo que eu fiz por ti valeu a pena’”.
Francisco Júnior é guineense, nasceu em Bissau há 23 anos. Desde os dez que recebe convites de empresários que trazem miúdos de África para tentar a sorte no futebol europeu. É um dos pelo menos 226 africanos (a maioria da Guiné-Bissau), a jogar em competições europeias, que deixaram o continente com menos de 18 anos atrás do sonho de um dia se tornarem futebolistas profissionais. Um dos 294 jogadores africanos e sul-americanos que, driblando a lei da Federação Internacional de Futebol (FIFA), chegaram à Europa menores.
“A FIFA tem uma regra geral: não podem ocorrer transferências de jogadores de futebol com menos de 18 anos fora do seu país porque entende-se que até estes atingirem a maioridade têm de cumprir várias fases da sua vida pessoal. O que acontece é que a Lei de Migração de cada país [que na maioria dos casos permite a livre circulação de menores de idade perante uma autorização parental] se sobrepõe à FIFA. Na minha opinião, quem não está a fazer o seu papel são as Federações Nacionais de Futebol que deveriam de obrigar os clubes a cumprir as regras”, acusa o advogado de Direito Desportivo João Diogo Manteigas.
A mãe sempre disse “não”, que era muito novo. Só se os levassem a todos. Já o pai, Francisco da Silva, nunca negou que era o que mais desejava: “ter um filho na Europa a ganhar dinheiro para investir no seu país é o que qualquer guineense quer”, confessou sentado no sofá de pele importado, na casa nova que o filho lhe mandou construir em Bissau.
Promessas de dinheiro rápido a uma família de sete pessoas que vive com menos de um euro por dia parecem poder comprar tudo – até um filho. O futebol sempre foi um sonho, sim; mas também a única brecha que Francisco encontrou para poder ajudar-se a si e à família. “A vida em África não é fácil. É todos os dias à base da sobrevivência. A vida em África não é mesmo nada fácil”. Repete o lugar comum vezes sem conta, como se repeti-lo pudesse atenuar, mudar alguma coisa.
Francisco Júnior cresceu no Bairro Militar, nos arredores da capital guineense. Desde que se lembra, às seis da manhã já estava de pé para varrer a casa. Depois, com uma bandeja que a mãe lhe colocava em cima da cabeça, ia para a rua vender o que havia: bananas, pão, sal. “O dinheiro ia directamente para a minha mãe poder comprar acompanhamento para o arroz. A maioria das vezes, só tínhamos arroz branco. Ela fazia o impossível para pôr comida na mesa”, conta no último andar de um prédio com vista de 180 graus sobre a cidade de Liverpool, em Inglaterra, onde hoje vive.
Para chegar à escola, demorava duas horas de caminho, a pé, atravessado por um rio. Como não tinha dinheiro para o transporte, levava uns calções suplentes que trocava pelos encharcados depois de atravessar o canal. No fim das aulas, mais hora e meia até chegar aos treinos no estádio Lino Correia, onde joga o Sport Benfica de Bissau. A barriga ainda vazia, as pernas cansadas, os pés moídos pelos sapatos de plástico que usava para jogar. Treinava com fome. O jantar era, muitas das vezes, a primeira refeição do dia.
VENDEDORES DE SONHOS capítulo II
Quando Francisco começou a dar nas vistas no Sport Benfica de Bissau, com 14 anos, chegaram os primeiros convites a sério: Sporting e FC Porto estavam interessados. Portugal é a principal porta de entrada destes jogadores. Nos principais clubes europeus contam-se, na época de 2014/2015, 49 africanos e 9 sul-americanos menores, mais de metade joga em Portugal. Os três grandes do campeonato – Benfica, FC Porto e Sporting – são os clubes que tinham no seu plantel mais jogadores menores oriundos destes continentes. “Portugal é, para o bem e para o mal, uma plataforma excepcional para este tipo de negócio”, explica o Presidente do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol (SJPF), Joaquim Evangelista.
“O primeiro empresário que me contratou foi o Juca Fernandes (também guineense), a notícia de que me iam trazer para a Europa passava a toda a hora na rádio. Chegar à Europa era como se fosse chegar às nuvens. Pensava ‘nunca mais vou voltar’. A noção que tinha é que as pessoas aqui não precisavam de se esforçar, não precisavam de fazer nada… Mas depois não deu certo”, recorda Francisco.
Mais do que vender um miúdo talentoso, os empresários querem ganhar o máximo de dinheiro possível e a família de Francisco não tinha nada para oferecer. “Como éramos pobres, chegavam e negociavam o convite que me tinha sido feito directamente com famílias com mais dinheiro. Traziam outro miúdo no meu lugar”.
“O Catió aborda as pessoas da mesma forma há anos e continua a fazer sucesso”, denuncia. Catió Baldé é o empresário responsável por grande parte dos futebolistas guineenses que jogam na Europa, o “ponto nevrálgico das contratações na Guiné”, como o definiu João Diogo Manteigas. “É o empresário mais influente e com maior margem de sucesso no historial da Guiné em relação à transferência de jogadores para Portugal”, reforça o advogado. Muitas vezes são as próprias famílias que vão pedir ajuda aos empresários. “Chegam mesmo a mostrar mais interesse do que eles. A sua única preocupação é ganhar dinheiro com os jogadores. Ganham o deles e nunca mais querem saber de nada. Saber que o filho vai para a Europa já deixa os pais guineense felizes”, explica Francisco. O seu pai não foi excepção.
O convite de Catió Baldé chegou em Janeiro de 2008, enquanto Francisco representava a selecção guineense em Dakar, capital do vizinho Senegal. Era a primeira vez que o empresário contactava Francisco directamente:
– O Benfica está interessado e vai enviar uma pessoa para o Senegal para te trazer.
Há mais de quatro anos que ouvia a mesma lengalenga. Já não acreditava que um dia pudesse mesmo acontecer. O telefone voltou a tocar:
– Francisco, tu é que sabes. Ou vais, ou ficas. Ou voltas para a Guiné ou ficas no Senegal e viajas para Portugal, ultimou-lhe Baldé.
No bolso, Francisco levava apenas o dinheiro que o treinador da Selecção Guineense, Pedro Dias, lhe deu para voltar se algo corresse mal. Na cabeça, a “obrigação” de tirar a mãe da vida que levava. A mãe, sempre a mãe. Foi a sonhar com tudo o que lhe poderia comprar – a comida, as roupas, a casa nova – que embarcou sem visto naquele avião. “Ainda hoje não sei como passei… Cheguei, apresentei o meu passaporte e estava tudo certo. Quando cheguei a Lisboa, carimbaram-me o visto.” Tinha 15 anos.
ADEUS BISSAU, OLÁ LISBOA capítulo III
Quando saiu do aeroporto da Portela, soube pela primeira vez o que era ter frio. 30 minutos à espera do autocarro que o levaria para o centro de estágios do Benfica no Seixal com uma t-shirt e umas calças de algodão vestidas. “Acho que nunca tremi tanto na minha vida. Depois, fui bem recebido, havia lá outros guineenses, muitos africanos…”, recorda.
Um dia em Portugal e já queria voltar. Sentia falta de tudo, até dos banhos de água fria e do quarto sem luz. A sua nova casa estava vazia das conversas no alpendre com os vizinhos, das gargalhadas estridentes, dos mimos da mãe. “As pessoas eram diferentes. Na Guiné, de manhã quando acordávamos, estávamos logo todos juntos. Aqui cada um adormecia no seu canto. Só Deus sabe aquilo por que passei. Ligava à minha mãe e ela começava logo a chorar. ‘Se não te sentes bem, volta. Volta, volta, por favor’, dizia-me. Sempre fui um menino muito mimado.”
Ao fim de dois, três meses, habitou-se: cama, comida, roupa lavada, treinos e aulas de línguas – Francês, Inglês e Português. “Ainda comecei a ir à escola no 9º ano, mas com os treinos tive de desistir”. Nunca mais pensou em voltar. O Benfica pagava-lhe 400 euros por mês, enviava 300 para a Guiné. Catió Baldé nunca pagou à família a quantia que prometeu e Francisco sentia-se na obrigação de os ajudar. Um ciclo de dependência que dura até hoje.
“Quando assinei o primeiro contrato, o documento dizia que uma parte do dinheiro deveria ir para os meus pais e para o Benfica de Bissau (o clube onde se formou), mas esse dinheiro nunca chegou, ficou com os empresários. Na altura de assinar, oferecem roupa e bens materiais, mas depois nunca mais os vês. Passados anos, começas a perceber que foste e és explorado”.
Em diferentes declarações públicas, Catió Baldé disse sentir-se como um “pai para estes miúdos”. Mas Francisco garante nunca o ter visto como tal. Fez-se homem à força, passou por muitas dificuldades, mas não se arrepende: “Foi o Benfica que me tirou de África. Tenho com o clube uma dívida eterna. O Catió foi o homem que me trouxe e agradeço-lhe por isso, mas nunca o senti como pai.”
Os piores momentos por que passou eram quando chegava o Natal ou as férias grandes: os colegas de malas feitas à espera da família que chegava, sorridente, de carro e Francisco sentado num lancil, a observar à distância o afecto que também desejava para si.
Sabia de algumas pessoas que vieram da Guiné para Portugal, tentava contactá-las por Facebook, mas poucos respondiam. Apesar de tudo, teve “sorte”, garante. A sua “sorte” foi nunca ter sido expulso do clube onde jogava. Sempre ter tido onde dormir, o que vestir e comer. Nunca ter sido despejado na rua num país que não era o seu e onde não conhecia ninguém. “Conheço muitos empresários que pegam nos miúdos, recebem o dinheiro, deixam-nos nos clubes e vão-se embora. Não podes pegar no filho dos outros, levá-lo, e nunca mais te preocupares só porque ele é africano. Dizem que vão mudar a nossa vida e depois, quando chegamos à Europa, levam o dinheiro e já não querem saber”, denuncia. Passado pouco tempo, muitas destas crianças são dispensadas. Lesionam-se, não se conseguem adaptar em tempo útil, ficam aquém das expectativas, completamente sozinhas, sem ninguém que as acolha, às vezes a dormir na rua.
Francisco reconhece que vir para a Europa foi o melhor que lhe aconteceu, mas não compactua com o esquema montado. Garante que vai falar até lhe faltar a voz: “Não tenho medo de ninguém, não dependo de ninguém – só dos meus pés. É feio trazer os miúdos de África e abandoná-los na Europa. Porque quando eu digo abandono, é abandono… É abandono. Falamos de miúdos. Repito: um miúdo! Um miúdo que não tem idade para ser homem.”
Não está contra a vinda destes aspirantes a jogadores de futebol, o que o revolta é a forma como são trazidos, serem tratados como “mercadorias”, serem aliciados com a promessa de um futuro que pode nunca se concretizar.
O PESO DE UMA FAMÍLIA capítulo IV
Tem, garante, “idade para ser homem”, mas isso não atenua o vazio que sente. A solidão é desde há muito o seu tormento maior. “Vivo sozinho, não tenho ninguém. Se tenho um problema, estou sozinho; se estou doente, estou sozinho; se estou triste, estou sozinho. Se preciso de desabafar, tenho de desabafar comigo mesmo. Se a minha família tem problemas lá, eu é que tenho de os resolver. Eles têm de ir à escola, vestir, comer. É muita coisa para a cabeça de uma só pessoa”, desabafa.
Conquistou o que queria: é jogador do Everton, um clube da primeira Liga Inglesa, vive num T2 na marina de Liverpool, conduz um BMW X6, calça ténis da Nike e, em dias de festa, também veste Armani. Há meses em que chega a enviar mais de dez mil euros para a Guiné, no total – entre pai, irmãos, tios, primos e vizinhos – são mais de 20 as pessoas que dependem dele. “Os africanos acham que quem vem para a Europa fica rico automaticamente. Há muitos que não voltam ao seu país porque não conseguiram enriquecer o suficiente para sustentar todos os que lhe vão pedir dinheiro.”
Francisco construiu uma casa para a família em Bissau, comprou um táxi para o pai – que este aluga e soma ao salário de professor (cerca de 150 euros) -, paga a escola, comida e casa dos quatro irmãos que estudam no Senegal e envia dinheiro sempre que há uma emergência. Mesmo assim, Francisco da Silva, diz não se sentir ainda satisfeito “dentro do seu coração”.
Por mês, Francisco recebe 30 mil libras (cerca de 40 mil euros), sem contar com patrocínios e prémios de jogo. “Tento guardar o máximo, hoje estou aqui, mas amanhã não sei”. Dá-se a poucos luxos. A rotina vai pouco além dos treinos, dos jogos de Playstation e do iPhone, uma extensão do corpo que nunca larga. A música – que pode variar entre Kisomba, Rap ou Pop – também está lá sempre, como se a vida se recusasse a acontecer sem uma banda sonora constante. Beber uns whiskys e cantar karaoke em clubes privados, fumar chicha ou jantar no Nando’s – um franchising sul-africano conhecido pelos frangos assados – são os seus escapes. Tem uma vida monótona e regrada.
“Para seres futebolista, abdicas de muita coisa. A primeira é a juventude, não te divertes como um jovem normal. Só tens dez anos, 15 no máximo dependendo de como preservares o corpo. De um momento para o outro, podes ter uma lesão e nunca mais voltares a ser a mesma coisa. Quando és um jogador africano, ainda é mais complicado”. Há quase dez anos na Europa, já não liga quando o tom da sua pele é motivo para o insultarem em campo. “Ainda hoje nos treinos me chamaram nigger mother fucker [preto filho da puta]. Estou vacinado, passa-me ao lado.” Meteu na cabeça que para conseguir o mesmo tem de trabalhar o dobro. Se é justo? “Não, não é. Mas o mundo não é justo. Quem achar isso, é melhor mudar de planeta.”
NUNCA FUI TÃO RICO, NUNCA FUI TÃO POBRE capítulo v
Francisco não esquece tudo o que passou e sente que deve ajudar outros miúdos que, como ele, também vieram para a Europa atrás do sonho e acabaram sem clube. Preocupa-se, acolhe-os, trata-os com carinho. Batis faz parte da mobília da sua casa em Liverpool. Foi uma das promessas do Benfica em 2012, chegou a jogar nos Juniores da Selecção Portuguesa. Lesionou-se e ficou sem clube. A mesma história a repetir-se vezes sem conta. Chora quando, do outro lado da linha, a mãe lhe pede dinheiro para comprar um saco de arroz e Batis não tem como a ajudar. No apartamento de Francisco, come, dorme, joga videojogos, ouve música, acede à Internet. Quando quer ir para casa, Francisco paga-lhe o táxi ou vai levá-lo; também já lhe deu dinheiro para enviar para a família na Guiné. “Sei bem o desespero que pode ser. Na vida, hoje estás bem e amanhã podes já não estar. Gosto de ajudar, o dinheiro também serve para isso.”
O dinheiro pelo dinheiro não o fascinam. Quando saiu da Guiné, nunca imaginou que a sua conta bancária pudesse um dia vir a contar tantos dígitos. Quando saiu da Guiné, também nunca imaginou que um dia se pudesse sentir tão pobre. Nunca voltou à casa onde nasceu, rejeita tudo o que o recorde da pessoa que mais ama. A única coisa que queria era ter visto a mãe vestida com as roupas que lhe comprou numa loja europeia, a viver numa casa de tijolo, a servir-lhe um cozinhado de arroz recheado de peixes variados. Se naquela tarde não tivesse cedido à preguiça, se tivesse ido ao Western Union do Rossio enviar o dinheiro, talvez ainda fosse possível. Nunca vai saber. Os “se” são um fantasma com que teve de aprender a conviver. “A única coisa que queria era ver a minha mãe a sorrir, a dizer ‘obrigada’. Mas não consegui. Por isso é que nunca vou ser feliz na vida. Posso ter tudo, mas nunca vou ser feliz na vida.”