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Histórias de vida

A fuga possível

UM FILHO NA EUROPA capítulo I

No dia seguinte, às seis da manhã, o telemóvel voltou a tocar: “a mãe morreu”, disse-lhe o irmão. A mãe morreu. A mãe morreu. A mãe morreu. Ainda hoje, passados quatro anos, a frase ecoa na cabeça de Francisco. A viagem de avião do Senegal para Portugal – sozinho, assustado, sem visto. O corpo a tiritar de frio, t-shirt de algodão em cima do tronco enquanto esperava na Portela pelo autocarro que o levaria para o centro de treinos do Benfica. Os jogos em que não tinha ninguém para o ver na plateia, a solidão das férias passadas com o porteiro. De repente, o motivo principal que o fez, com apenas 15 anos, apostar tudo numa carreira de futebolista na Europa tinha desaparecido. “Ela era tudo para mim. O que mais queria era poder dar-lhe uma vida melhor. Sonhava construir-lhe uma casa como deve de ser, arranjar-lhe umas roupas decentes, fazer coisas que a minha mãe pudesse dizer ‘Francisco, aquilo que eu fiz por ti valeu a pena’”.

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Francisco Júnior é guineense, nasceu em Bissau há 23 anos. Desde os dez que recebe convites de empresários que trazem miúdos de África para tentar a sorte no futebol europeu. É um dos pelo menos 226 africanos (a maioria da Guiné-Bissau), a jogar em competições europeias, que deixaram o continente com menos de 18 anos atrás do sonho de um dia se tornarem futebolistas profissionais. Um dos 294 jogadores africanos e sul-americanos que, driblando a lei da Federação Internacional de Futebol (FIFA), chegaram à Europa menores.

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“A FIFA tem uma regra geral: não podem ocorrer transferências de jogadores de futebol com menos de 18 anos fora do seu país porque entende-se que até estes atingirem a maioridade têm de cumprir várias fases da sua vida pessoal. O que acontece é que a Lei de Migração de cada país [que na maioria dos casos permite a livre circulação de menores de idade perante uma autorização parental] se sobrepõe à FIFA. Na minha opinião, quem não está a fazer o seu papel são as Federações Nacionais de Futebol que deveriam de obrigar os clubes a cumprir as regras”, acusa o advogado de Direito Desportivo João Diogo Manteigas.

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A mãe sempre disse “não”, que era muito novo. Só se os levassem a todos. Já o pai, Francisco da Silva, nunca negou que era o que mais desejava: ter um filho na Europa a ganhar dinheiro para investir no seu país é o que qualquer guineense quer, confessou sentado no sofá de pele importado, na casa nova que o filho lhe mandou construir em Bissau.

Promessas de dinheiro rápido a uma família de sete pessoas que vive com menos de um euro por dia parecem poder comprar tudo – até um filho. O futebol sempre foi um sonho, sim; mas também a única brecha que Francisco encontrou para poder ajudar-se a si e à família. “A vida em África não é fácil. É todos os dias à base da sobrevivência. A vida em África não é mesmo nada fácil”. Repete o lugar comum vezes sem conta, como se repeti-lo pudesse atenuar, mudar alguma coisa.

Francisco Júnior cresceu no Bairro Militar, nos arredores da capital guineense. Desde que se lembra, às seis da manhã já estava de pé para varrer a casa. Depois, com uma bandeja que a mãe lhe colocava em cima da cabeça, ia para a rua vender o que havia: bananas, pão, sal. “O dinheiro ia directamente para a minha mãe poder comprar acompanhamento para o arroz. A maioria das vezes, só tínhamos arroz branco. Ela fazia o impossível para pôr comida na mesa”, conta no último andar de um prédio com vista de 180 graus sobre a cidade de Liverpool, em Inglaterra, onde hoje vive.

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Para chegar à escola, demorava duas horas de caminho, a pé, atravessado por um rio. Como não tinha dinheiro para o transporte, levava uns calções suplentes que trocava pelos encharcados depois de atravessar o canal. No fim das aulas, mais hora e meia até chegar aos treinos no estádio Lino Correia, onde joga o Sport Benfica de Bissau. A barriga ainda vazia, as pernas cansadas, os pés moídos pelos sapatos de plástico que usava para jogar. Treinava com fome. O jantar era, muitas das vezes, a primeira refeição do dia.

VENDEDORES DE SONHOS capítulo II

Quando Francisco começou a dar nas vistas no Sport Benfica de Bissau, com 14 anos, chegaram os primeiros convites a sério: Sporting e FC Porto estavam interessados. Portugal é a principal porta de entrada destes jogadores. Nos principais clubes europeus contam-se, na época de 2014/2015, 49 africanos e 9 sul-americanos menores, mais de metade joga em Portugal. Os três grandes do campeonato – Benfica, FC Porto e Sporting – são os clubes que tinham no seu plantel mais jogadores menores oriundos destes continentes. “Portugal é, para o bem e para o mal, uma plataforma excepcional para este tipo de negócio”, explica o Presidente do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol (SJPF), Joaquim Evangelista.

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“O primeiro empresário que me contratou foi o Juca Fernandes (também guineense), a notícia de que me iam trazer para a Europa passava a toda a hora na rádio. Chegar à Europa era como se fosse chegar às nuvens. Pensava ‘nunca mais vou voltar’. A noção que tinha é que as pessoas aqui não precisavam de se esforçar, não precisavam de fazer nada… Mas depois não deu certo”, recorda Francisco.

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Mais do que vender um miúdo talentoso, os empresários querem ganhar o máximo de dinheiro possível e a família de Francisco não tinha nada para oferecer. “Como éramos pobres, chegavam e negociavam o convite que me tinha sido feito directamente com famílias com mais dinheiro. Traziam outro miúdo no meu lugar”.

“O Catió aborda as pessoas da mesma forma há anos e continua a fazer sucesso”, denuncia. Catió Baldé é o empresário responsável por grande parte dos futebolistas guineenses que jogam na Europa, o “ponto nevrálgico das contratações na Guiné”, como o definiu João Diogo Manteigas. “É o empresário mais influente e com maior margem de sucesso no historial da Guiné em relação à transferência de jogadores para Portugal”, reforça o advogado. Muitas vezes são as próprias famílias que vão pedir ajuda aos empresários. “Chegam mesmo a mostrar mais interesse do que eles. A sua única preocupação é ganhar dinheiro com os jogadores. Ganham o deles e nunca mais querem saber de nada. Saber que o filho vai para a Europa já deixa os pais guineense felizes”, explica Francisco. O seu pai não foi excepção.

O convite de Catió Baldé chegou em Janeiro de 2008, enquanto Francisco representava a selecção guineense em Dakar, capital do vizinho Senegal. Era a primeira vez que o empresário contactava Francisco directamente:
– O Benfica está interessado e vai enviar uma pessoa para o Senegal para te trazer.
Há mais de quatro anos que ouvia a mesma lengalenga. Já não acreditava que um dia pudesse mesmo acontecer. O telefone voltou a tocar:
– Francisco, tu é que sabes. Ou vais, ou ficas. Ou voltas para a Guiné ou ficas no Senegal e viajas para Portugal, ultimou-lhe Baldé.

No bolso, Francisco levava apenas o dinheiro que o treinador da Selecção Guineense, Pedro Dias, lhe deu para voltar se algo corresse mal. Na cabeça, a “obrigação” de tirar a mãe da vida que levava. A mãe, sempre a mãe. Foi a sonhar com tudo o que lhe poderia comprar – a comida, as roupas, a casa nova – que embarcou sem visto naquele avião. “Ainda hoje não sei como passei… Cheguei, apresentei o meu passaporte e estava tudo certo. Quando cheguei a Lisboa, carimbaram-me o visto.” Tinha 15 anos.

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ADEUS BISSAU, OLÁ LISBOA capítulo III

 

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Quando saiu do aeroporto da Portela, soube pela primeira vez o que era ter frio. 30 minutos à espera do autocarro que o levaria para o centro de estágios do Benfica no Seixal com uma t-shirt e umas calças de algodão vestidas. “Acho que nunca tremi tanto na minha vida. Depois, fui bem recebido, havia lá outros guineenses, muitos africanos…”, recorda.

Um dia em Portugal e já queria voltar. Sentia falta de tudo, até dos banhos de água fria e do quarto sem luz. A sua nova casa estava vazia das conversas no alpendre com os vizinhos, das gargalhadas estridentes, dos mimos da mãe. “As pessoas eram diferentes. Na Guiné, de manhã quando acordávamos, estávamos logo todos juntos. Aqui cada um adormecia no seu canto. Só Deus sabe aquilo por que passei. Ligava à minha mãe e ela começava logo a chorar. ‘Se não te sentes bem, volta. Volta, volta, por favor’, dizia-me. Sempre fui um menino muito mimado.”

Ao fim de dois, três meses, habitou-se: cama, comida, roupa lavada, treinos e aulas de línguas – Francês, Inglês e Português. “Ainda comecei a ir à escola no 9º ano, mas com os treinos tive de desistir”. Nunca mais pensou em voltar. O Benfica pagava-lhe 400 euros por mês, enviava 300 para a Guiné. Catió Baldé nunca pagou à família a quantia que prometeu e Francisco sentia-se na obrigação de os ajudar. Um ciclo de dependência que dura até hoje.

“Quando assinei o primeiro contrato, o documento dizia que uma parte do dinheiro deveria ir para os meus pais e para o Benfica de Bissau (o clube onde se formou), mas esse dinheiro nunca chegou, ficou com os empresários. Na altura de assinar, oferecem roupa e bens materiais, mas depois nunca mais os vês. Passados anos, começas a perceber que foste e és explorado”.

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Em diferentes declarações públicas, Catió Baldé disse sentir-se como um “pai para estes miúdos”. Mas Francisco garante nunca o ter visto como tal. Fez-se homem à força, passou por muitas dificuldades, mas não se arrepende: “Foi o Benfica que me tirou de África. Tenho com o clube uma dívida eterna. O Catió foi o homem que me trouxe e agradeço-lhe por isso, mas nunca o senti como pai.”

Os piores momentos por que passou eram quando chegava o Natal ou as férias grandes: os colegas de malas feitas à espera da família que chegava, sorridente, de carro e Francisco sentado num lancil, a observar à distância o afecto que também desejava para si.

Sabia de algumas pessoas que vieram da Guiné para Portugal, tentava contactá-las por Facebook, mas poucos respondiam. Apesar de tudo, teve “sorte”, garante. A sua “sorte” foi nunca ter sido expulso do clube onde jogava. Sempre ter tido onde dormir, o que vestir e comer. Nunca ter sido despejado na rua num país que não era o seu e onde não conhecia ninguém. “Conheço muitos empresários que pegam nos miúdos, recebem o dinheiro, deixam-nos nos clubes e vão-se embora. Não podes pegar no filho dos outros, levá-lo, e nunca mais te preocupares só porque ele é africano. Dizem que vão mudar a nossa vida e depois, quando chegamos à Europa, levam o dinheiro e já não querem saber”, denuncia. Passado pouco tempo, muitas destas crianças são dispensadas. Lesionam-se, não se conseguem adaptar em tempo útil, ficam aquém das expectativas, completamente sozinhas, sem ninguém que as acolha, às vezes a dormir na rua.

Francisco reconhece que vir para a Europa foi o melhor que lhe aconteceu, mas não compactua com o esquema montado. Garante que vai falar até lhe faltar a voz: “Não tenho medo de ninguém, não dependo de ninguém – só dos meus pés. É feio trazer os miúdos de África e abandoná-los na Europa. Porque quando eu digo abandono, é abandono… É abandono. Falamos de miúdos. Repito: um miúdo! Um miúdo que não tem idade para ser homem.”

Não está contra a vinda destes aspirantes a jogadores de futebol, o que o revolta é a forma como são trazidos, serem tratados como “mercadorias”, serem aliciados com a promessa de um futuro que pode nunca se concretizar.

O PESO DE UMA FAMÍLIA capítulo IV

Tem, garante, “idade para ser homem”, mas isso não atenua o vazio que sente. A solidão é desde há muito o seu tormento maior. “Vivo sozinho, não tenho ninguém. Se tenho um problema, estou sozinho; se estou doente, estou sozinho; se estou triste, estou sozinho. Se preciso de desabafar, tenho de desabafar comigo mesmo. Se a minha família tem problemas lá, eu é que tenho de os resolver. Eles têm de ir à escola, vestir, comer. É muita coisa para a cabeça de uma só pessoa”, desabafa.

Conquistou o que queria: é jogador do Everton, um clube da primeira Liga Inglesa, vive num T2 na marina de Liverpool, conduz um BMW X6, calça ténis da Nike e, em dias de festa, também veste Armani. Há meses em que chega a enviar mais de dez mil euros para a Guiné, no total – entre pai, irmãos, tios, primos e vizinhos – são mais de 20 as pessoas que dependem dele. “Os africanos acham que quem vem para a Europa fica rico automaticamente. Há muitos que não voltam ao seu país porque não conseguiram enriquecer o suficiente para sustentar todos os que lhe vão pedir dinheiro.”

Francisco construiu uma casa para a família em Bissau, comprou um táxi para o pai – que este aluga e soma ao salário de professor (cerca de 150 euros) -, paga a escola, comida e casa dos quatro irmãos que estudam no Senegal e envia dinheiro sempre que há uma emergência. Mesmo assim, Francisco da Silva, diz não se sentir ainda satisfeito “dentro do seu coração”.

Por mês, Francisco recebe 30 mil libras (cerca de 40 mil euros), sem contar com patrocínios e prémios de jogo. “Tento guardar o máximo, hoje estou aqui, mas amanhã não sei”. Dá-se a poucos luxos. A rotina vai pouco além dos treinos, dos jogos de Playstation e do iPhone, uma extensão do corpo que nunca larga. A música – que pode variar entre Kisomba, Rap ou Pop – também está lá sempre, como se a vida se recusasse a acontecer sem uma banda sonora constante. Beber uns whiskys e cantar karaoke em clubes privados, fumar chicha ou jantar no Nando’s – um franchising sul-africano conhecido pelos frangos assados – são os seus escapes. Tem uma vida monótona e regrada.

“Para seres futebolista, abdicas de muita coisa. A primeira é a juventude, não te divertes como um jovem normal. Só tens dez anos, 15 no máximo dependendo de como preservares o corpo. De um momento para o outro, podes ter uma lesão e nunca mais voltares a ser a mesma coisa. Quando és um jogador africano, ainda é mais complicado”. Há quase dez anos na Europa, já não liga quando o tom da sua pele é motivo para o insultarem em campo. “Ainda hoje nos treinos me chamaram nigger mother fucker [preto filho da puta]. Estou vacinado, passa-me ao lado.” Meteu na cabeça que para conseguir o mesmo tem de trabalhar o dobro. Se é justo? “Não, não é. Mas o mundo não é justo. Quem achar isso, é melhor mudar de planeta.”

NUNCA FUI TÃO RICO, NUNCA FUI TÃO POBRE capítulo v

Francisco não esquece tudo o que passou e sente que deve ajudar outros miúdos que, como ele, também vieram para a Europa atrás do sonho e acabaram sem clube. Preocupa-se, acolhe-os, trata-os com carinho. Batis faz parte da mobília da sua casa em Liverpool. Foi uma das promessas do Benfica em 2012, chegou a jogar nos Juniores da Selecção Portuguesa. Lesionou-se e ficou sem clube. A mesma história a repetir-se vezes sem conta. Chora quando, do outro lado da linha, a mãe lhe pede dinheiro para comprar um saco de arroz e Batis não tem como a ajudar. No apartamento de Francisco, come, dorme, joga videojogos, ouve música, acede à Internet. Quando quer ir para casa, Francisco paga-lhe o táxi ou vai levá-lo; também já lhe deu dinheiro para enviar para a família na Guiné. “Sei bem o desespero que pode ser. Na vida, hoje estás bem e amanhã podes já não estar. Gosto de ajudar, o dinheiro também serve para isso.”

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O dinheiro pelo dinheiro não o fascinam. Quando saiu da Guiné, nunca imaginou que a sua conta bancária pudesse um dia vir a contar tantos dígitos. Quando saiu da Guiné, também nunca imaginou que um dia se pudesse sentir tão pobre. Nunca voltou à casa onde nasceu, rejeita tudo o que o recorde da pessoa que mais ama. A única coisa que queria era ter visto a mãe vestida com as roupas que lhe comprou numa loja europeia, a viver numa casa de tijolo, a servir-lhe um cozinhado de arroz recheado de peixes variados. Se naquela tarde não tivesse cedido à preguiça, se tivesse ido ao Western Union do Rossio enviar o dinheiro, talvez ainda fosse possível. Nunca vai saber. Os “se” são um fantasma com que teve de aprender a conviver. “A única coisa que queria era ver a minha mãe a sorrir, a dizer ‘obrigada’. Mas não consegui. Por isso é que nunca vou ser feliz na vida. Posso ter tudo, mas nunca vou ser feliz na vida.”

Histórias de vida

O Messi do Brasil

À CONQUISTA DO BARCELONA capítulo I

Espanha, Catalunha. Dez horas de uma noite de Dezembro de 2012, um frio que enregelava os ossos. Cassiano preparava-se para o treino no campo do Cornellà, um clube barriga de aluguer do Barcelona onde muitos craques estrangeiros iniciam a sua carreira de futebolistas. Francisco tremia na bancada: quando viu o tamanho dos outros jogadores, achou que o filho não seria capaz. “Vi cada africano com dois metros de altura e pensei: “não é possível que esses meninos tenham todos a mesma idade”. Cassiano começou a jogar e a temperatura subiu: fintou um, fintou outro, correu para a baliza, marcou golo. Estes foram os segundos que pai e filho congelaram na memória, os momentos que escolheram para resumir o dia que terá sido um dos mais importantes das suas vidas.

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“Fala o pai de Cassiano Bouzon? Gostaria muito que seu filho viesse treinar e fazer testes ao Barcelona.” Do outro lado da linha, do outro lado do oceano, estava Josep Maria Minguella, o responsável por há 15 anos ter levado Lionel Messi da Argentina para Espanha. Era Outubro de 2012, Cassiano tinha 11 anos, vivia em Salvador, no Brasil.

Francisco Jesus emudeceu. Sonhava com este momento ainda antes de Cassiano nascer. Com o dia em que o seu “filho homem” pudesse ser aquilo que uma lesão no joelho lhe roubou de rompão, interrompendo-lhe uma carreira – que recorda “brilhante” – como médio esquerdo. Foi invadido por aquela alegria infantil e inexplicável que vem de dentro. Mas rapidamente caiu em si: e se, afinal, o filho não fosse o “fenómeno” de que todos falavam em Salvador? Uma coisa era jogar nos escalões base do Vitória no Brasil, outra o futebol profissional na Europa. Fosse como fosse, tinha de tentar.

Francisco projecta no filho aquilo que nunca conseguiu: ser um jogador de futebol profissional. “Se Cassiano jogar 10% do que você jogou, esse moleque vai chegar longe”, dizem-lhe os amigos que há 20 anos o viram em campo. Desde que o filho nasceu, todos os anos lhe oferece uma “bolinha” de futebol. “Cassiano é o único homem da família: o único sobrinho homem, o único neto homem, entre cinco meninas. Sempre foi o dengo, o chodó.”

“Precisava saber de uma vez por todas se valeria a pena continuar a investir… Afinal, estamos a falar de Minguella, o homem que levou para a Europa não só Messi mas jogadores como Maradona e Rivaldo”, justifica Francisco. O vídeo que partilhara no Youtube, onde em seis minutos Cassiano dribla meia equipa e marca seis golos, tinha dado frutos. É assim que muitos miúdos dão a conhecer o seu talento e se fazem notar por olheiros e empresários. Foi assim que Francisco conseguiu apontar holofotes para o filho.

Partilhar vídeos no Youtube é apenas uma das formas de mostrar o talento destes miúdos. Na Colômbia, por exemplo, realiza-se anualmente o Pony Fútbol, onde crianças entre os 10 e os 14 anos competem para serem notadas por treinadores e pela imprensa. Os pais dos mais talentosos são abordados directamente por agentes. “Descobre como podes participar e ser grande desde pequeno” é o lema do evento.

AOS GIGANTES TAMBÉM SE DIZ NÃO capítulo II

“O Cassiano passou. Se ficar connosco, será entregue a uma família de acolhimento aqui em Espanha. Estuda durante o dia e treina à noite. Cobriremos todas as suas despesas.” A proposta, garantem pai e filho, saiu da boca do então presidente do Barcelona, Sandro Rosell, menos de um mês depois de Francisco e Cassiano terem aterrado na cidade e dormido pela primeira vez em casa de Josep Minguella.

“Não dá para ter ideia da imensidão que foi: quando vi que tinham criado um clube de fãs para o Cassiano em Espanha, não quis acreditar. Tudo isto nos deixou muito assustados mas, ao mesmo tempo, era muito gostoso”, avalia Francisco. “Assustador. A palavra é mesmo essa: assustador”, interrompe Irtes.

Cassiano não pensou duas vezes: queria ficar. Dizer “não” ao clube onde joga Messi, ainda que seja Cristiano Ronaldo com quem um dia gostaria de partilhar o mesmo relvado, parecia-lhe uma loucura.

Francisco não precisou da resposta do filho para decidir: “Saiu na imprensa que o pai de Cassiano disse não ao Barcelona. Quem sou eu para dizer não ao Barcelona? Só não podia deixar uma criança de 11 anos sozinha noutro continente, longe da família. Ainda sugeri que nos levassem a todos para a Europa: Eu, Irtes e Maria Cecília [irmã de Cassiano]… Mas foi na altura em que o nome do clube começou a estar envolvido na polémica de contratação de menores e nada se concretizou.

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Em Abril de 2014, a Federação Internacional de Futebol (FIFA) proibiu o Barcelona de contratar jogadores durante um ano por entender que o clube catalão não cumpriu a lei que regula a transferência de jogadores na aquisição de dez atletas menores. Segundo o comunicado da entidade que rege o futebol mundial, “as investigações relacionaram-se com vários jogadores menores que foram registados e participaram em competições ao serviço do clube ao longo de vários períodos entre 2009 e 2013”. Para João Diogo Manteigas, advogado especialista em direito desportivo, as regras da FIFA são claras: “até aos 18 anos, os jogadores não podem ser transferidos para fora do seu país”. Existem apenas três excepções: se a família do jogador mudar de país por razões laborais e o menor a acompanhar; se for uma transferência dentro da União Europeia ou entre países com acordos bilaterais, no caso de jogador ter pelo menos 14 anos; se a transferência não implicar uma deslocação superior a 100km e o jogador continue a viver no seu país de origem.

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Os dirigentes do Barcelona concordaram com o pai de Cassiano: “Ele é de facto muito novo. Não pode ser federado porque não tem idade e trazer a família do Brasil para a Europa é impossível”, disseram-lhe. Dois anos depois, na época de 2014/2015, vários clubes espanhóis continuavam a ter jogadores africanos e sul-americanos no seu plantel.

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O avançado marroquino Oulam Abou é um desses cassos. Trocou Casablanca pela Catalunha em 2007, o mesmo ano em que começou a jogar nos escalões Junior do Barcelona com apenas 9 anos. No início da época 2014/2015, já com 17 anos, foi contratado pelo FC Porto. Esta última transferência cumpre as regras da FIFA que admite a compra e venda de jogadores com mais de 16 anos entre países membros da União Europeia, desde que garantam “todas as condições necessárias para que o menor tenha adequado acesso à educação”.

A maioria dos miúdos africanos e sul-americanos envolvidos neste tipo de convites vem de contextos desfavorecidos. Encontram na oportunidade uma forma de escapar à pobreza, de proporcionar uma vida melhor aos seus pais e irmãos. Não dizem não, não podem dizer não: o que têm a perder é quase sempre muito pouco. Com Cassiano é diferente. Cresceu no seio de uma família de classe média, com uns pais que se deixaram encantar pela possibilidade de terem em casa um “craque da bola” mas garantem não esquecer – repetem-no vezes sem conta – que primeiro têm de “criar um homem com valores, princípios e educação. Só depois nascerá o jogador de futebol”.

A REBOQUE DE UM SONHO capítulo III

A vida da família Bouzon divide-se entre o antes e o depois de Barcelona. Quando regressaram, Francisco concentrou nas suas mãos o futuro da carreira do filho e tornou-se numa espécie de empresário a tempo inteiro. Delegou o rumo da metalúrgica que geria no seu sócio e Irtes trocou a Varig, companhia de aviação onde trabalhava como secretária há mais de dez anos, pelos papéis de mãe e dona de casa. Maria Cecília, na altura com 14 anos, teve de deixar para trás a cidade onde nasceu, a escola, os amigos… Francisco, Irtes e Maria Cecília aceitaram ser, acima de eles próprios, o pai, a mãe e a irmã de Cassiano Bouzon.

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“Foram vários os clubes da Europa, os agentes FIFA, os empresários que nos contactaram. Acabámos por ficar no Rio de Janeiro, no Flamengo, onde Cassiano está muito feliz”, contou Francisco em Junho de 2014. “Não vou dizer que foi fácil. Chorei muito, senti que ninguém estava a levar os meus sentimentos em conta. Deixar a minha família, os meus amigos, a minha cidade… Mas depois pensei: ‘quem sou eu para travar o sonho do meu chodó? Não tinha esse direito’”, reflecte a irmã de Cassiano.

Francisco gosta de gabar-se de como o filho “ficou famoso de um dia para o outro”, de como foi “o garoto mais falado do Brasil”. De como a Nike patrocina todo o seu equipamento desportivo, ainda que Cassiano prefira os chinelos às chuteiras da marca quando joga à bola no terraço de casa. Depois desce à terra. Relembra que o filho ainda é uma criança e que toda a megalomania que o envolve deve ser tratada com pinças.

Vive na ambiguidade, na dúvida de quem não sabe bem se continuar a lutar pelo sonho – que é tanto de Cassiano como seu – é o caminho mais certo. As suas palavras saltitam, em poucos segundos, entre a emoção e a razão: “Quando um pai perde a linha da verdade, achando que o filho pode ser uma salvação financeira para a família, acho que é aí que vem a perda do garoto. Há muita alegria, muita felicidade, há um retorno financeiro rápido, mas também pode haver uma queda muito brusca, uma decepção. Nos grandes talentos que se perdem – porque não existe só Cassiano no mundo, há milhares – os pais têm quase sempre 100% de culpa”.

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A ida para o Flamengo aconteceu depois do Fluminense ter rejeitado Cassiano: questionou a sua estatura, como seria o futuro de um jogador que com 12 anos tinha menos de metro e meio? “A previsão é que, com acompanhamento médico e hormonal, ele venha a ter entre 1,60 m e 1,72 m”, tinham avaliado os pediatras e endocrinologistas que acompanharam o jovem em Barcelona. “O meu filho precisa de maturar, ter força, crescer. Todos os jogadores famosos vivem em função disso”, antecipa Francisco, ainda sem saber que o futuro iria passar por aí.

O Rubro-Negro encarregou-se da mudança de Salvador para o Rio de Janeiro. Por sua conta, ficaram o colégio de Cassiano, a renda da casa num condomínio privado na periferia da cidade e uma “contribuição mensal”, que permitia à família manter-se. “Com um garoto de 12 anos, é impossível fazer um contrato. Temos um documento que comprova o vínculo”, explica Francisco.

O acordo de um ano durou pouco mais do que isso. “O jogador não evoluiu conforme esperado e o Flamengo diminuiu o quantitativo de atletas. Fizemos uma triagem e mantivemos quem estava melhor. Foi uma questão técnica, acontece muitas vezes os meninos virem badalados e não se adaptarem. Não houve nada de anormal, é um menino bacana, muito carinhoso”, disse em Outubro de 2014, ao site Globo Esporte, o director das camadas de base do Flamengo, Carlos Noval, sobre Cassiano Bouzon.

Não pode dizer-se que tenha sido um balde de água fria. O jovem estava quase sempre no banco, Francisco já esperava o pior, mas lamenta ter sabido da decisão pelos media. Não era a primeira vez que outros miúdos que se fizeram notar através de vídeos na Internet não tinham vida longa no Flamengo.

DE NOVO A EUROPA capítulo IV

Quase dois anos depois de terem rejeitado o Barcelona, em Outubro de 2014, pai e filho voltaram a atravessar o Atlântico. Eram para ficar uma semana na Europa, passaram quase dois meses. Para não chumbar o ano escolar, Cassiano estudou com a mãe por Skype e fez exames à distância. Foram a convite do empresário Héber Miranda, que lhes abriu portas no Arsenal, Charlton, West Bromwich e Tottenham, onde o jovem fez testes.

Dois meses depois, Maria Cecília terminou o ano lectivo e Irtes decidiu embarcar com a filha para Lisboa. Estava farta de esperar uma resposta à distância, a família iria encontrar-se em Portugal e passar o Natal na Europa. Tinham planos para ficar, havia “muitos clubes europeus interessados”, diziam. Mas os problemas de sempre mantinham-se: “precisamos de ter papéis para conseguirmos trabalhar aqui, o mundo do futebol não cria condições para as famílias virem”, explica Irtes.

Maria Cecília, que depois de se ter trocado Salvador pelo Rio de Janeiro disse não querer mais mudanças na sua vida, mostra-se agora disposta a tudo pelo irmão: “Uma vez uma tia me disse: Quer voar comigo? Então não pisa na minha asa. Eu quero voar com Cassiano.”

“Nem sempre os melhores vencem, conseguem chegar ao topo, mas tenho a certeza de que Cassiano vai conseguir”, antecipa a sua mãe. No fundo, Irtes e Francisco sabem que repetir vezes sem conta que o filho “vai ser um grande jogador de futebol” não passa de um exercício, mais ou menos realista, de adivinhação.

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Hoje, a família vive de novo em Salvador, longe de Cassiano que se mudou para São Paulo onde está a fazer um “tratamento para crescer”, explica Francisco numa mensagem trocada no Facebook. Sem clube mas tranquilo porque, como garante, “é um grande projecto que Héber [o agente de Cassiano] idealizou”: “Voltámos para o Brasil e, desde Fevereiro, Cassiano está a morar e a treinar em Santos. Lá, faz um tratamento hormonal de crescimento com somatropina, o mesmo medicamento utilizado por Lionel Messi no Barcelona. O objectivo é que no próximo ano esteja a disputar o campeonato de sub-15 pelo Santos. Actualmente é patrocinado pela Nike”, explicou o agente por email.

Histórias de vida

Uma espera incerta

A MINHA CASA É UM ESTÁDIO capítulo I

Valentine passou a infância a brincar com uma bola de plástico na praceta do bairro onde vivia em Abuja, capital da Nigéria, e ainda guarda com carinho as chuteiras que o pai lhe ofereceu em miúdo. O futebol era a sua “paixão impossível”. Os pais queriam que estudasse e ele, um miúdo, nunca teve coragem de dizer em voz alta o que lhe passava na cabeça.

Nada fazia adivinhar que, aos 19 anos, seria jogador do Associação Desportiva (AD) Nogueirense e viveria em Nogueira do Cravo, uma aldeia do distrito de Coimbra com pouco mais de 2300 habitantes. O dia em que o agente Tersoo John lhe disse que “tinha coração para jogar à bola”, que “não é normal tanta coragem” num rapaz da sua idade, mudou-lhe a vida. Lembra-se como se fosse hoje.

Encontramo-lo dentro do estádio do AD Nogueirense, numa casa a menos de 20 metros do relvado e do balneário que partilha com mais dois nigerianos, um brasileiro, um costa-marfinense, um maliano, um bissau-guineense e quatro portugueses. “Sei que estiveram lá dentro, a casa não estava muito limpa, era o dia de folga da empregada”, justifica-se Rui Fernandes, director desportivo do clube. “É mais fácil captarmos um jogador de fora do que um português. Um estrangeiro que vem para cá, quer-se promover, alcançar o maior sucesso possível. Somos um clube de interior, passamos dificuldades, não podemos sustentar uma equipa acima do que já fazemos. São estas as condições”.

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As condições a que o director desportivo se refere são alojamento e alimentação. “Há um jogador que está aqui há dois anos sem receber nada. Tive sorte, sou um dos dois que tem contrato profissional”, conta Valentine. O clube até faz mais do que aquilo a que é obrigado: “no primeiro mês, deram-me um envelope com 100 euros, não sei quanto é que os outros receberam porque nos chamaram um a um, à parte”, recorda.

No Campeonato Nacional de Seniores, onde o AD Nogueirense joga, o regulamento da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) exige a inscrição de todos os jogadores mas não obriga à realização de um contrato de trabalho – “é uma competição amadora, por norma os contratos realizam-se apenas para os profissionais”, confirma o advogado João Diogo Manteigas.

Valentine é uma excepção porque, garante o director desportivo do AD Nogueirense, “não tem nacionalidade portuguesa, nem título de residência português”, fazer-lhe um contrato foi “a única alternativa”. Além disso, é um dos jogadores a quem a equipa técnica identificou mais potencial. Em caso de venda, com um contrato de trabalho, o clube garante a sua parte na transferência.

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Dos jogadores do AD Nogueirense que partilham casa com Valentine, apenas o maliano Sydou Ouilly, não está, nem nunca esteve, registado na FPF – de acordo com o motor de busca disponível no site da instituição – apesar de já contar quatro anos em Portugal e ter passado por clubes como o Leixões Sport Club, o Futebol Clube de Oliveira do Hospital e o Sport Clube Mineiro Aljustrelense. Como explica João Diogo Manteigas, as fichas de inscrição exigidas pela FPF, sejam jogadores amadores ou profissionais, permitem estas lacunas.

Valentine é disso exemplo. Três meses depois de ter chegado a Portugal – em 2013 – com visto de turista ficou em situação illegal, só em Dezembro de 2015 recebeu a sua primeira autorização de residência. Apesar disso, o seu nome aparece registado na FPF como tendo jogado pelo Paços de Ferreira e agora pelo AD Nogueirense.

A FPF nega ter conhecimento destes casos e diz “não ser possível haver em Portugal inscrições que violem as regras da FIFA.” A instituição garante ainda que “monitoriza as transferências de jogadores e coopera com as autoridades portuguesas no sentido de identificar eventuais irregularidades”.

À SEGUNDA FOI DE VEZ capítulo II

Valentine Akpey fez parte do grupo de oito jovens que em 2013 saiu da Nigéria com destino a Portugal. Queria fazer da sua “paixão impossível” uma realidade. A esperança foi-lhe vendida em forma de promessa pelo treinador português Sérgio Daniel e pelo seu agente nigeriano, Tersoo John: tinha de mostrar o que valia, dar o seu melhor. Se o fizesse, ingressaria num bom clube, garantiam-lhe. Tinha 17 anos.

European Dream Came True (O Sonho Europeu Tornou-se Real) era o nome do projecto promovido por Sérgio Daniel e pela academia De’ Elite Sports Group, uma empresa de caça-talentos onde, quando ainda tinha um site online, o empresário nigeriano Garba Tijani era apresentado como presidente, Tersoo John como vice-presidente e Sérgio Daniel como director técnico.

“Este projecto consiste em escolher os melhores jogadores nigerianos dos 12 aos 23 anos para o AC Milan em Itália, o AS Mónaco em França e o SC Olhanense em Portugal. O processo de selecção será feito por olheiros e representantes escolhidos pelos clubes, liderado por Sérgio Daniel, e filmado para que os clubes em questão possam ver os DVD’s dos atletas”, lê-se no fórum online Nairaland, onde a convocatória foi publicada há dois anos.

Valentine, apresentado na conta de Youtube de Sérgio Daniel como “Spider Man [Homem Aranha]” e um dos “melhores diamantes” da academia, foi um dos seleccionados. Já em 2012 tinha sido escolhido, o então presidente do SC Olhanense esperava-o no Algarve, mas, nessa altura, o visto foi-lhe negado.

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Um ano depois, o destino quase que lhe voltava a trocar as voltas: a caminho da embaixada de Portugal na Nigéria para a reunião de pedido de visto, o autocarro onde viajava com os outros jogadores foi parado por um grupo de assaltantes armados. Ficaram sem telemóveis, computadores, todas as suas malas foram revistadas.

Valentine pensou que não chegaria a tempo: “Primeiro achei que não ia sobreviver, depois só pensava como é que ia aparecer na reunião com aquela roupa, sem tomar banho, sem lavar os dentes. Estava nervoso”.

Quando finalmente chegou, recorda que havia diferentes gabinetes, calhou-lhe um homem. Descreve a conversa como se fosse hoje: perguntaram-lhe para onde queria ir, por que motivo, quem o levava, quem pagaria o seu voo e para que clube iria jogar. Respondeu a todas as perguntas. No final, “ele confirmou na Internet se o Sport Clube Estrela era um clube real e disse que a entrevista tinha terminado”, conta. A resposta só chegou duas semanas depois.

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SEM CLUBE E SEM PLANO B capítulo III

Valentine chegou a Portugal no dia 13 de Novembro de 2013. Faltavam-lhe três meses para os 18 anos, não podia ainda assinar um contrato profissional. “Antes de virmos, a minha academia comprou um clube das distritais, o Sport Clube Estrela. Sabíamos que ficaríamos aí até nos habituarmos ao clima”. Treinaram durante um mês, fizeram alguns jogos amigáveis, chegaram a jogar com o Benfica e o Sporting.

Foi durante uma dessas partidas, no Algarve contra o Olhanense, que um agente reparou nele: “disse-me que eu era um bom jogador e que me queria levar para outros clubes”. Passada uma semana, Valentine estava a treinar nos Juniores do FC Porto. Foi assim que começou aquilo a que chama a sua “carreira profissional como jogador de futebol”.

Depois do FC Porto, passou pelos Juniores do Paços de Ferreira, onde jogou durante uma época, mas acabou por ser dispensado antes de assinar o prometido contrato profissional. “O treinador Paulo Fonseca disse que me poria na equipa principal, mas ele foi para o SC Braga antes de a época acabar e os dirigentes do clube nunca me disseram nada”, explica.

Ficou sem clube e sem plano B. No Verão de 2014, enquanto passava férias em Portalegre, chegou a ser “apanhado” pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) que lhe deu 20 dias para regularizar a situação ou abandonar o país: “Estava com amigos nigerianos, que jogavam no Sport Clube Estrela [o clube que foi comprado pela empresa De Elite Sports Group]. Como entretanto fui para o Paços, não tive mais problemas, mas eles chegaram a ser levados a tribunal”, recorda.

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Pouco depois, no final de 2014, o SEF investigou 104 clubes e associações desportivas em todo o país e identificou 508 atletas estrangeiros, dos quais 203 estavam em situação illegal. Em pelo menos 25 clubes, foram encontrados atletas sem visto ou cartão de residente, avançou o semanário Expresso em Fevereiro de 2015. No mesmo mês, o jornal Record publicou uma notícia intitulada “SEF retém jogadores no treino do Estrela de Portalegre [nome pelo qual é conhecido o Sport Clube Estrela]” e a direcção do clube informou na sua página do Facebook que não continuará a participar do Campeonato Distrital de Seniores Masculinos.

Na tentativa de controlar o aumento de futebolistas estrangeiros sem documentos a jogar em Portugal, a Federação Portuguesa de Futebol, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, a Liga Portuguesa de Futebol Profissional e o Sindicato de Jogadores de Futebol Profissionais assinaram em Junho de 2015 um protocolo para “alargar o âmbito de cooperação quanto à obtenção de autorizações de residência de jogadores estrangeiros”, criar um grupo de trabalho que acompanhe casos de especial relevância e promover acções de esclarecimento junto de agentes e organizações desportivas sobre a legislação de “entrada, permanência, saída e afastamento de cidadãos estrangeiros do território nacional”.

NÃO QUERO VOLTAR, NÃO POSSO VOLTAR capítulo IV

Em Agosto deste ano, Valentine aceitou jogar pelo AD Nogueirense. “O meu agente teve de me trazer para aqui”. A pé, não alcança mais do que o único café de Nogueira do Cravo. Só sai da aldeia quando o treinador Rui Vale se disponibiliza a levá-lo à cidade mais próxima, Oliveira do Hospital. O seu dia-a-dia resume-se a dormir, ver filmes, treinar e “ficar focado”. “Tenho de me manter focado” é a frase que mais repete.

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Desde que chegou a Portugal, sempre teve casa e comida mas nunca ganhou mais de 250€ por mês, pagos pelo Paços de Ferreira depois de cinco meses a queixar-se. “Quando deixei a Nigéria, esperava que fosse mais fácil, não é como pensava… É difícil, mas preciso continuar a ser forte, a lutar, porque tenho de alcançar aquilo que quero.”

“Muitos dos meus amigos ainda não percebem que as coisas aqui não são fáceis como eles pensam. Acham que mal chegas à Europa, começas a ganhar dinheiro e ficas rico, e não é nada assim. Pedem-me para lhes enviar dinheiro e eu digo: “Quando tiver vou enviar-vos, mas agora não tenho.”

Ainda assim diz não ter vindo iludido, repete que o seu agente, Tersoo John, “um grande amigo”, é diferente dos “outros agentes”: “ajuda-me e envia-me algum dinheiro, ainda sou jovem, não preciso de muito.”

Valentine deixou a Nigéria à revelia da família e dos amigos. Pouco depois do seu irmão mais novo, que também se preparava para vir para a Europa, ter morrido: “Estava a jogar futebol, chovia muito e veio um relâmpago. Quando o raio atingiu o chão, todos os jogadores caíram. Foram-se levantando, um por um. Todos menos o meu irmão.” Não se arrepende da decisão, mas tem saudades, muitas. Da comida, da namorada, da mãe. Se quissesse voltar para a Nigéria, tem a certeza que Tersoo John lhe pagaria o bilhete. Mas não quer, ou não pode, ou não consegue sequer imaginar a hipótese. Não assim, sem nada, com o sonho por cumprir.

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