À CONQUISTA DO BARCELONA capítulo I
Espanha, Catalunha. Dez horas de uma noite de Dezembro de 2012, um frio que enregelava os ossos. Cassiano preparava-se para o treino no campo do Cornellà, um clube barriga de aluguer do Barcelona onde muitos craques estrangeiros iniciam a sua carreira de futebolistas. Francisco tremia na bancada: quando viu o tamanho dos outros jogadores, achou que o filho não seria capaz. “Vi cada africano com dois metros de altura e pensei: “não é possível que esses meninos tenham todos a mesma idade”. Cassiano começou a jogar e a temperatura subiu: fintou um, fintou outro, correu para a baliza, marcou golo. Estes foram os segundos que pai e filho congelaram na memória, os momentos que escolheram para resumir o dia que terá sido um dos mais importantes das suas vidas.
“Fala o pai de Cassiano Bouzon? Gostaria muito que seu filho viesse treinar e fazer testes ao Barcelona.” Do outro lado da linha, do outro lado do oceano, estava Josep Maria Minguella, o responsável por há 15 anos ter levado Lionel Messi da Argentina para Espanha. Era Outubro de 2012, Cassiano tinha 11 anos, vivia em Salvador, no Brasil.
Francisco Jesus emudeceu. Sonhava com este momento ainda antes de Cassiano nascer. Com o dia em que o seu “filho homem” pudesse ser aquilo que uma lesão no joelho lhe roubou de rompão, interrompendo-lhe uma carreira – que recorda “brilhante” – como médio esquerdo. Foi invadido por aquela alegria infantil e inexplicável que vem de dentro. Mas rapidamente caiu em si: e se, afinal, o filho não fosse o “fenómeno” de que todos falavam em Salvador? Uma coisa era jogar nos escalões base do Vitória no Brasil, outra o futebol profissional na Europa. Fosse como fosse, tinha de tentar.
Francisco projecta no filho aquilo que nunca conseguiu: ser um jogador de futebol profissional. “Se Cassiano jogar 10% do que você jogou, esse moleque vai chegar longe”, dizem-lhe os amigos que há 20 anos o viram em campo. Desde que o filho nasceu, todos os anos lhe oferece uma “bolinha” de futebol. “Cassiano é o único homem da família: o único sobrinho homem, o único neto homem, entre cinco meninas. Sempre foi o dengo, o chodó.”
“Precisava saber de uma vez por todas se valeria a pena continuar a investir… Afinal, estamos a falar de Minguella, o homem que levou para a Europa não só Messi mas jogadores como Maradona e Rivaldo”, justifica Francisco. O vídeo que partilhara no Youtube, onde em seis minutos Cassiano dribla meia equipa e marca seis golos, tinha dado frutos. É assim que muitos miúdos dão a conhecer o seu talento e se fazem notar por olheiros e empresários. Foi assim que Francisco conseguiu apontar holofotes para o filho.
Partilhar vídeos no Youtube é apenas uma das formas de mostrar o talento destes miúdos. Na Colômbia, por exemplo, realiza-se anualmente o Pony Fútbol, onde crianças entre os 10 e os 14 anos competem para serem notadas por treinadores e pela imprensa. Os pais dos mais talentosos são abordados directamente por agentes. “Descobre como podes participar e ser grande desde pequeno” é o lema do evento.
AOS GIGANTES TAMBÉM SE DIZ NÃO capítulo II
“O Cassiano passou. Se ficar connosco, será entregue a uma família de acolhimento aqui em Espanha. Estuda durante o dia e treina à noite. Cobriremos todas as suas despesas.” A proposta, garantem pai e filho, saiu da boca do então presidente do Barcelona, Sandro Rosell, menos de um mês depois de Francisco e Cassiano terem aterrado na cidade e dormido pela primeira vez em casa de Josep Minguella.
“Não dá para ter ideia da imensidão que foi: quando vi que tinham criado um clube de fãs para o Cassiano em Espanha, não quis acreditar. Tudo isto nos deixou muito assustados mas, ao mesmo tempo, era muito gostoso”, avalia Francisco. “Assustador. A palavra é mesmo essa: assustador”, interrompe Irtes.
Cassiano não pensou duas vezes: queria ficar. Dizer “não” ao clube onde joga Messi, ainda que seja Cristiano Ronaldo com quem um dia gostaria de partilhar o mesmo relvado, parecia-lhe uma loucura.
Francisco não precisou da resposta do filho para decidir: “Saiu na imprensa que o pai de Cassiano disse não ao Barcelona. Quem sou eu para dizer não ao Barcelona? Só não podia deixar uma criança de 11 anos sozinha noutro continente, longe da família. Ainda sugeri que nos levassem a todos para a Europa: Eu, Irtes e Maria Cecília [irmã de Cassiano]… Mas foi na altura em que o nome do clube começou a estar envolvido na polémica de contratação de menores e nada se concretizou.
Em Abril de 2014, a Federação Internacional de Futebol (FIFA) proibiu o Barcelona de contratar jogadores durante um ano por entender que o clube catalão não cumpriu a lei que regula a transferência de jogadores na aquisição de dez atletas menores. Segundo o comunicado da entidade que rege o futebol mundial, “as investigações relacionaram-se com vários jogadores menores que foram registados e participaram em competições ao serviço do clube ao longo de vários períodos entre 2009 e 2013”. Para João Diogo Manteigas, advogado especialista em direito desportivo, as regras da FIFA são claras: “até aos 18 anos, os jogadores não podem ser transferidos para fora do seu país”. Existem apenas três excepções: se a família do jogador mudar de país por razões laborais e o menor a acompanhar; se for uma transferência dentro da União Europeia ou entre países com acordos bilaterais, no caso de jogador ter pelo menos 14 anos; se a transferência não implicar uma deslocação superior a 100km e o jogador continue a viver no seu país de origem.
Os dirigentes do Barcelona concordaram com o pai de Cassiano: “Ele é de facto muito novo. Não pode ser federado porque não tem idade e trazer a família do Brasil para a Europa é impossível”, disseram-lhe. Dois anos depois, na época de 2014/2015, vários clubes espanhóis continuavam a ter jogadores africanos e sul-americanos no seu plantel.
O avançado marroquino Oulam Abou é um desses cassos. Trocou Casablanca pela Catalunha em 2007, o mesmo ano em que começou a jogar nos escalões Junior do Barcelona com apenas 9 anos. No início da época 2014/2015, já com 17 anos, foi contratado pelo FC Porto. Esta última transferência cumpre as regras da FIFA que admite a compra e venda de jogadores com mais de 16 anos entre países membros da União Europeia, desde que garantam “todas as condições necessárias para que o menor tenha adequado acesso à educação”.
A maioria dos miúdos africanos e sul-americanos envolvidos neste tipo de convites vem de contextos desfavorecidos. Encontram na oportunidade uma forma de escapar à pobreza, de proporcionar uma vida melhor aos seus pais e irmãos. Não dizem não, não podem dizer não: o que têm a perder é quase sempre muito pouco. Com Cassiano é diferente. Cresceu no seio de uma família de classe média, com uns pais que se deixaram encantar pela possibilidade de terem em casa um “craque da bola” mas garantem não esquecer – repetem-no vezes sem conta – que primeiro têm de “criar um homem com valores, princípios e educação. Só depois nascerá o jogador de futebol”.
A REBOQUE DE UM SONHO capítulo III
A vida da família Bouzon divide-se entre o antes e o depois de Barcelona. Quando regressaram, Francisco concentrou nas suas mãos o futuro da carreira do filho e tornou-se numa espécie de empresário a tempo inteiro. Delegou o rumo da metalúrgica que geria no seu sócio e Irtes trocou a Varig, companhia de aviação onde trabalhava como secretária há mais de dez anos, pelos papéis de mãe e dona de casa. Maria Cecília, na altura com 14 anos, teve de deixar para trás a cidade onde nasceu, a escola, os amigos… Francisco, Irtes e Maria Cecília aceitaram ser, acima de eles próprios, o pai, a mãe e a irmã de Cassiano Bouzon.
“Foram vários os clubes da Europa, os agentes FIFA, os empresários que nos contactaram. Acabámos por ficar no Rio de Janeiro, no Flamengo, onde Cassiano está muito feliz”, contou Francisco em Junho de 2014. “Não vou dizer que foi fácil. Chorei muito, senti que ninguém estava a levar os meus sentimentos em conta. Deixar a minha família, os meus amigos, a minha cidade… Mas depois pensei: ‘quem sou eu para travar o sonho do meu chodó? Não tinha esse direito’”, reflecte a irmã de Cassiano.
Francisco gosta de gabar-se de como o filho “ficou famoso de um dia para o outro”, de como foi “o garoto mais falado do Brasil”. De como a Nike patrocina todo o seu equipamento desportivo, ainda que Cassiano prefira os chinelos às chuteiras da marca quando joga à bola no terraço de casa. Depois desce à terra. Relembra que o filho ainda é uma criança e que toda a megalomania que o envolve deve ser tratada com pinças.
Vive na ambiguidade, na dúvida de quem não sabe bem se continuar a lutar pelo sonho – que é tanto de Cassiano como seu – é o caminho mais certo. As suas palavras saltitam, em poucos segundos, entre a emoção e a razão: “Quando um pai perde a linha da verdade, achando que o filho pode ser uma salvação financeira para a família, acho que é aí que vem a perda do garoto. Há muita alegria, muita felicidade, há um retorno financeiro rápido, mas também pode haver uma queda muito brusca, uma decepção. Nos grandes talentos que se perdem – porque não existe só Cassiano no mundo, há milhares – os pais têm quase sempre 100% de culpa”.
A ida para o Flamengo aconteceu depois do Fluminense ter rejeitado Cassiano: questionou a sua estatura, como seria o futuro de um jogador que com 12 anos tinha menos de metro e meio? “A previsão é que, com acompanhamento médico e hormonal, ele venha a ter entre 1,60 m e 1,72 m”, tinham avaliado os pediatras e endocrinologistas que acompanharam o jovem em Barcelona. “O meu filho precisa de maturar, ter força, crescer. Todos os jogadores famosos vivem em função disso”, antecipa Francisco, ainda sem saber que o futuro iria passar por aí.
O Rubro-Negro encarregou-se da mudança de Salvador para o Rio de Janeiro. Por sua conta, ficaram o colégio de Cassiano, a renda da casa num condomínio privado na periferia da cidade e uma “contribuição mensal”, que permitia à família manter-se. “Com um garoto de 12 anos, é impossível fazer um contrato. Temos um documento que comprova o vínculo”, explica Francisco.
O acordo de um ano durou pouco mais do que isso. “O jogador não evoluiu conforme esperado e o Flamengo diminuiu o quantitativo de atletas. Fizemos uma triagem e mantivemos quem estava melhor. Foi uma questão técnica, acontece muitas vezes os meninos virem badalados e não se adaptarem. Não houve nada de anormal, é um menino bacana, muito carinhoso”, disse em Outubro de 2014, ao site Globo Esporte, o director das camadas de base do Flamengo, Carlos Noval, sobre Cassiano Bouzon.
Não pode dizer-se que tenha sido um balde de água fria. O jovem estava quase sempre no banco, Francisco já esperava o pior, mas lamenta ter sabido da decisão pelos media. Não era a primeira vez que outros miúdos que se fizeram notar através de vídeos na Internet não tinham vida longa no Flamengo.
DE NOVO A EUROPA capítulo IV
Quase dois anos depois de terem rejeitado o Barcelona, em Outubro de 2014, pai e filho voltaram a atravessar o Atlântico. Eram para ficar uma semana na Europa, passaram quase dois meses. Para não chumbar o ano escolar, Cassiano estudou com a mãe por Skype e fez exames à distância. Foram a convite do empresário Héber Miranda, que lhes abriu portas no Arsenal, Charlton, West Bromwich e Tottenham, onde o jovem fez testes.
Dois meses depois, Maria Cecília terminou o ano lectivo e Irtes decidiu embarcar com a filha para Lisboa. Estava farta de esperar uma resposta à distância, a família iria encontrar-se em Portugal e passar o Natal na Europa. Tinham planos para ficar, havia “muitos clubes europeus interessados”, diziam. Mas os problemas de sempre mantinham-se: “precisamos de ter papéis para conseguirmos trabalhar aqui, o mundo do futebol não cria condições para as famílias virem”, explica Irtes.
Maria Cecília, que depois de se ter trocado Salvador pelo Rio de Janeiro disse não querer mais mudanças na sua vida, mostra-se agora disposta a tudo pelo irmão: “Uma vez uma tia me disse: Quer voar comigo? Então não pisa na minha asa. Eu quero voar com Cassiano.”
“Nem sempre os melhores vencem, conseguem chegar ao topo, mas tenho a certeza de que Cassiano vai conseguir”, antecipa a sua mãe. No fundo, Irtes e Francisco sabem que repetir vezes sem conta que o filho “vai ser um grande jogador de futebol” não passa de um exercício, mais ou menos realista, de adivinhação.
Hoje, a família vive de novo em Salvador, longe de Cassiano que se mudou para São Paulo onde está a fazer um “tratamento para crescer”, explica Francisco numa mensagem trocada no Facebook. Sem clube mas tranquilo porque, como garante, “é um grande projecto que Héber [o agente de Cassiano] idealizou”: “Voltámos para o Brasil e, desde Fevereiro, Cassiano está a morar e a treinar em Santos. Lá, faz um tratamento hormonal de crescimento com somatropina, o mesmo medicamento utilizado por Lionel Messi no Barcelona. O objectivo é que no próximo ano esteja a disputar o campeonato de sub-15 pelo Santos. Actualmente é patrocinado pela Nike”, explicou o agente por email.
Lembrava-me vagamente do Cassiano, já que algo havia lido na imprensa brasileira. Mas nada se compara a uma história bem contada, tanto no formato quando na sensibilidade da narrativa. Emocionei-me com o Francisco. Torci para que a “a paixão impossível” de Valentine fosse, ao fim, possível. Cassianos, Valentines e Franciscos existem aos montes e é super importante mostrar esse outro lado do futebol, em que sonhos e necessidades são o combustível para uma travessia geralmente dura e cheia de desafios de “gente grande” impostos a crianças. Por acaso li a reportagem em 7 de abril, data em que, no Brasil, comemora-se o dia do jornalista. Trabalhos como este mostram que há esperança neste nosso ofício tão “castigado” nos últimos anos. Parabéns!