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Uma espera incerta

A MINHA CASA É UM ESTÁDIO capítulo I

Valentine passou a infância a brincar com uma bola de plástico na praceta do bairro onde vivia em Abuja, capital da Nigéria, e ainda guarda com carinho as chuteiras que o pai lhe ofereceu em miúdo. O futebol era a sua “paixão impossível”. Os pais queriam que estudasse e ele, um miúdo, nunca teve coragem de dizer em voz alta o que lhe passava na cabeça.

Nada fazia adivinhar que, aos 19 anos, seria jogador do Associação Desportiva (AD) Nogueirense e viveria em Nogueira do Cravo, uma aldeia do distrito de Coimbra com pouco mais de 2300 habitantes. O dia em que o agente Tersoo John lhe disse que “tinha coração para jogar à bola”, que “não é normal tanta coragem” num rapaz da sua idade, mudou-lhe a vida. Lembra-se como se fosse hoje.

Encontramo-lo dentro do estádio do AD Nogueirense, numa casa a menos de 20 metros do relvado e do balneário que partilha com mais dois nigerianos, um brasileiro, um costa-marfinense, um maliano, um bissau-guineense e quatro portugueses. “Sei que estiveram lá dentro, a casa não estava muito limpa, era o dia de folga da empregada”, justifica-se Rui Fernandes, director desportivo do clube. “É mais fácil captarmos um jogador de fora do que um português. Um estrangeiro que vem para cá, quer-se promover, alcançar o maior sucesso possível. Somos um clube de interior, passamos dificuldades, não podemos sustentar uma equipa acima do que já fazemos. São estas as condições”.

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As condições a que o director desportivo se refere são alojamento e alimentação. “Há um jogador que está aqui há dois anos sem receber nada. Tive sorte, sou um dos dois que tem contrato profissional”, conta Valentine. O clube até faz mais do que aquilo a que é obrigado: “no primeiro mês, deram-me um envelope com 100 euros, não sei quanto é que os outros receberam porque nos chamaram um a um, à parte”, recorda.

No Campeonato Nacional de Seniores, onde o AD Nogueirense joga, o regulamento da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) exige a inscrição de todos os jogadores mas não obriga à realização de um contrato de trabalho – “é uma competição amadora, por norma os contratos realizam-se apenas para os profissionais”, confirma o advogado João Diogo Manteigas.

Valentine é uma excepção porque, garante o director desportivo do AD Nogueirense, “não tem nacionalidade portuguesa, nem título de residência português”, fazer-lhe um contrato foi “a única alternativa”. Além disso, é um dos jogadores a quem a equipa técnica identificou mais potencial. Em caso de venda, com um contrato de trabalho, o clube garante a sua parte na transferência.

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Dos jogadores do AD Nogueirense que partilham casa com Valentine, apenas o maliano Sydou Ouilly, não está, nem nunca esteve, registado na FPF – de acordo com o motor de busca disponível no site da instituição – apesar de já contar quatro anos em Portugal e ter passado por clubes como o Leixões Sport Club, o Futebol Clube de Oliveira do Hospital e o Sport Clube Mineiro Aljustrelense. Como explica João Diogo Manteigas, as fichas de inscrição exigidas pela FPF, sejam jogadores amadores ou profissionais, permitem estas lacunas.

Valentine é disso exemplo. Três meses depois de ter chegado a Portugal – em 2013 – com visto de turista ficou em situação illegal, só em Dezembro de 2015 recebeu a sua primeira autorização de residência. Apesar disso, o seu nome aparece registado na FPF como tendo jogado pelo Paços de Ferreira e agora pelo AD Nogueirense.

A FPF nega ter conhecimento destes casos e diz “não ser possível haver em Portugal inscrições que violem as regras da FIFA.” A instituição garante ainda que “monitoriza as transferências de jogadores e coopera com as autoridades portuguesas no sentido de identificar eventuais irregularidades”.

À SEGUNDA FOI DE VEZ capítulo II

Valentine Akpey fez parte do grupo de oito jovens que em 2013 saiu da Nigéria com destino a Portugal. Queria fazer da sua “paixão impossível” uma realidade. A esperança foi-lhe vendida em forma de promessa pelo treinador português Sérgio Daniel e pelo seu agente nigeriano, Tersoo John: tinha de mostrar o que valia, dar o seu melhor. Se o fizesse, ingressaria num bom clube, garantiam-lhe. Tinha 17 anos.

European Dream Came True (O Sonho Europeu Tornou-se Real) era o nome do projecto promovido por Sérgio Daniel e pela academia De’ Elite Sports Group, uma empresa de caça-talentos onde, quando ainda tinha um site online, o empresário nigeriano Garba Tijani era apresentado como presidente, Tersoo John como vice-presidente e Sérgio Daniel como director técnico.

“Este projecto consiste em escolher os melhores jogadores nigerianos dos 12 aos 23 anos para o AC Milan em Itália, o AS Mónaco em França e o SC Olhanense em Portugal. O processo de selecção será feito por olheiros e representantes escolhidos pelos clubes, liderado por Sérgio Daniel, e filmado para que os clubes em questão possam ver os DVD’s dos atletas”, lê-se no fórum online Nairaland, onde a convocatória foi publicada há dois anos.

Valentine, apresentado na conta de Youtube de Sérgio Daniel como “Spider Man [Homem Aranha]” e um dos “melhores diamantes” da academia, foi um dos seleccionados. Já em 2012 tinha sido escolhido, o então presidente do SC Olhanense esperava-o no Algarve, mas, nessa altura, o visto foi-lhe negado.

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Um ano depois, o destino quase que lhe voltava a trocar as voltas: a caminho da embaixada de Portugal na Nigéria para a reunião de pedido de visto, o autocarro onde viajava com os outros jogadores foi parado por um grupo de assaltantes armados. Ficaram sem telemóveis, computadores, todas as suas malas foram revistadas.

Valentine pensou que não chegaria a tempo: “Primeiro achei que não ia sobreviver, depois só pensava como é que ia aparecer na reunião com aquela roupa, sem tomar banho, sem lavar os dentes. Estava nervoso”.

Quando finalmente chegou, recorda que havia diferentes gabinetes, calhou-lhe um homem. Descreve a conversa como se fosse hoje: perguntaram-lhe para onde queria ir, por que motivo, quem o levava, quem pagaria o seu voo e para que clube iria jogar. Respondeu a todas as perguntas. No final, “ele confirmou na Internet se o Sport Clube Estrela era um clube real e disse que a entrevista tinha terminado”, conta. A resposta só chegou duas semanas depois.

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SEM CLUBE E SEM PLANO B capítulo III

Valentine chegou a Portugal no dia 13 de Novembro de 2013. Faltavam-lhe três meses para os 18 anos, não podia ainda assinar um contrato profissional. “Antes de virmos, a minha academia comprou um clube das distritais, o Sport Clube Estrela. Sabíamos que ficaríamos aí até nos habituarmos ao clima”. Treinaram durante um mês, fizeram alguns jogos amigáveis, chegaram a jogar com o Benfica e o Sporting.

Foi durante uma dessas partidas, no Algarve contra o Olhanense, que um agente reparou nele: “disse-me que eu era um bom jogador e que me queria levar para outros clubes”. Passada uma semana, Valentine estava a treinar nos Juniores do FC Porto. Foi assim que começou aquilo a que chama a sua “carreira profissional como jogador de futebol”.

Depois do FC Porto, passou pelos Juniores do Paços de Ferreira, onde jogou durante uma época, mas acabou por ser dispensado antes de assinar o prometido contrato profissional. “O treinador Paulo Fonseca disse que me poria na equipa principal, mas ele foi para o SC Braga antes de a época acabar e os dirigentes do clube nunca me disseram nada”, explica.

Ficou sem clube e sem plano B. No Verão de 2014, enquanto passava férias em Portalegre, chegou a ser “apanhado” pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) que lhe deu 20 dias para regularizar a situação ou abandonar o país: “Estava com amigos nigerianos, que jogavam no Sport Clube Estrela [o clube que foi comprado pela empresa De Elite Sports Group]. Como entretanto fui para o Paços, não tive mais problemas, mas eles chegaram a ser levados a tribunal”, recorda.

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Pouco depois, no final de 2014, o SEF investigou 104 clubes e associações desportivas em todo o país e identificou 508 atletas estrangeiros, dos quais 203 estavam em situação illegal. Em pelo menos 25 clubes, foram encontrados atletas sem visto ou cartão de residente, avançou o semanário Expresso em Fevereiro de 2015. No mesmo mês, o jornal Record publicou uma notícia intitulada “SEF retém jogadores no treino do Estrela de Portalegre [nome pelo qual é conhecido o Sport Clube Estrela]” e a direcção do clube informou na sua página do Facebook que não continuará a participar do Campeonato Distrital de Seniores Masculinos.

Na tentativa de controlar o aumento de futebolistas estrangeiros sem documentos a jogar em Portugal, a Federação Portuguesa de Futebol, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, a Liga Portuguesa de Futebol Profissional e o Sindicato de Jogadores de Futebol Profissionais assinaram em Junho de 2015 um protocolo para “alargar o âmbito de cooperação quanto à obtenção de autorizações de residência de jogadores estrangeiros”, criar um grupo de trabalho que acompanhe casos de especial relevância e promover acções de esclarecimento junto de agentes e organizações desportivas sobre a legislação de “entrada, permanência, saída e afastamento de cidadãos estrangeiros do território nacional”.

NÃO QUERO VOLTAR, NÃO POSSO VOLTAR capítulo IV

Em Agosto deste ano, Valentine aceitou jogar pelo AD Nogueirense. “O meu agente teve de me trazer para aqui”. A pé, não alcança mais do que o único café de Nogueira do Cravo. Só sai da aldeia quando o treinador Rui Vale se disponibiliza a levá-lo à cidade mais próxima, Oliveira do Hospital. O seu dia-a-dia resume-se a dormir, ver filmes, treinar e “ficar focado”. “Tenho de me manter focado” é a frase que mais repete.

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Desde que chegou a Portugal, sempre teve casa e comida mas nunca ganhou mais de 250€ por mês, pagos pelo Paços de Ferreira depois de cinco meses a queixar-se. “Quando deixei a Nigéria, esperava que fosse mais fácil, não é como pensava… É difícil, mas preciso continuar a ser forte, a lutar, porque tenho de alcançar aquilo que quero.”

“Muitos dos meus amigos ainda não percebem que as coisas aqui não são fáceis como eles pensam. Acham que mal chegas à Europa, começas a ganhar dinheiro e ficas rico, e não é nada assim. Pedem-me para lhes enviar dinheiro e eu digo: “Quando tiver vou enviar-vos, mas agora não tenho.”

Ainda assim diz não ter vindo iludido, repete que o seu agente, Tersoo John, “um grande amigo”, é diferente dos “outros agentes”: “ajuda-me e envia-me algum dinheiro, ainda sou jovem, não preciso de muito.”

Valentine deixou a Nigéria à revelia da família e dos amigos. Pouco depois do seu irmão mais novo, que também se preparava para vir para a Europa, ter morrido: “Estava a jogar futebol, chovia muito e veio um relâmpago. Quando o raio atingiu o chão, todos os jogadores caíram. Foram-se levantando, um por um. Todos menos o meu irmão.” Não se arrepende da decisão, mas tem saudades, muitas. Da comida, da namorada, da mãe. Se quissesse voltar para a Nigéria, tem a certeza que Tersoo John lhe pagaria o bilhete. Mas não quer, ou não pode, ou não consegue sequer imaginar a hipótese. Não assim, sem nada, com o sonho por cumprir.

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